Ainda serão necessários padres?

Desde finais do século XIX até um pouco depois do concílio Vaticano II, o contexto sociopolítico português criou uma imagem distorcida da pessoa e da missão do padre, sobretudo nos ambientes académicos e citadinos. A história - desde o liberalismo, passando pela implantação da República e culminando com o 25 de Abril - é muito concludente e não deixa margens a quaisquer dúvidas. O povo português, dito culto, é muito anti-clerical. Algumas forças secretas anticatólicas, através dos romances realistas e neorrealistas e dos meios de comunicação social então em voga, criaram mentalidade e, rapidamente, esta atingiu e dominou e convenceu muitos homens, mesmo entre operários e campesinos, autoconsiderados progressistas, ainda que não progressivos. A fúria anticatólica era eminentemente anticlerical. Em quaisquer encontros sociais em que estivesse presente um padre, havia sempre alguém a resmungar desdenhosa- mente contra o catolicismo, contra os padres e contra a Igreja e, de vez em quando, lá soltava uma palavra de dimensões supremas, do tamanho de um palavrão. Não raramente alguém retorquia: «não vês que está ali um padre? Vê se tens tento na língua». E, se a educação existisse, o assunto acalmava; se não existisse, aumentava na intensidade e na má-língua e nem a cortesia valia de nada. Mesmo assim, a presença do padre servia, em muitos casos, de travão!...
Felizmente, hoje já não existe esse radicalismo. O papel do padre, consoante o carisma de cada um, tornou-se importante na vida de muitos cristãos e da comunidade, seja na visibilidade social e catequética, seja na credibilidade e sinceridade de vida.
Hoje, o padre é chamado a ser o homem da Palavra, um anunciador da esperança em linguagem atual, como os profetas o foram no AT e os apóstolos no NT. Hoje o padre é chamado a exercer a paternidade espiritual de modo intenso nas famílias desfeitas e nas outras, pela disponibilidade para acolher e acompanhar. Hoje, o padre é chamado a sondar e a valorizar as novas fronteiras onde o Espírito se revela como Amor criativo. Por isso, apesar de ser uma frase feita, o padre continua a ser um outro Cristo na terra. (Ser uma frase feita, não lhe retira a verdade que ela esconde). Na qualidade de outro Cristo, compete-lhe reconfigurar o plano histórico à possibilidade de Deus, isto é, tornar absoluto o que é relativo, como o amor, a justiça, o bem e a beleza. Nenhum outro o consegue fazer da mesma maneira, precisamente porque nenhum outro tem esse poder sacramental. De facto, não compete ao padre a reforma de comportamentos, mas o alinhamento no sentido da vida, pois Jesus também não foi um moralista nem um ideólogo nem sequer fundou uma escola de Sabedoria. O que fez foi inscrever na História a possibilidade do divino. O seu anúncio foi o Reino de Deus, não os reinos da Terra. Atualmente, a família e o território paroquial deixaram de ser os contrafortes que sustentam os caminhos da Fé — e a crise atual não é uma crise de crer, mas uma crise das comunidades de crença e da sua incapacidade para dialogar com as mutações culturais em curso. Por essa razão, eu acho que, para além do serviço ligado à fé e à religião, os padres continuam a ser necessários como congregadores dos crentes à volta de Deus e como congregadores dos não crentes à volta dos ideais humanistas.
Cón. Manuel Maria in a defesa, 6 de fevereiro 2019