A DEVASSA DO SOFRIMENTO

Quando a dor bate à porta e a sua visita se torna dramática e implacável, nada há de mais confortante do que a proximidade das pessoas que se amam, um ombro amigo ou umas palavras que tenham o poder de nos regenerar. Por isso, dizemos que um amigo não tem preço e a amizade há que a proteger e preservar.

Todos teremos já passado por momentos em que alguém, ao nosso lado, teve uma missão primordial para nós, em situações de sofrimento atroz. Com essas pessoas ficamos eternamente gratos e, quando seja necessário, seremos nós os primeiros a estar presentes para confortar os que já nos confortaram. Esta experiência da solidariedade na dor leva-nos a reagir ainda de forma mais larga, perante causas humanas gritantes em países distantes, em situações de cataclismos devastadores ou em acidentes de proporções tais que reclamam a nossa ajuda. Nessas ocasiões, redescobrimos que somos família humana e a fraternidade solidária impele-nos a sentir como nossa a dor alheia.

Toda esta situação nada tem a ver com o que temos vindo a assistir nos últimos tempos. As técnicas da comunicação e a mercantilização da informação têm progredido até ao ponto de ultrapassar os limites do inimaginável e do bom senso, acabando por perverter completamente os objectivos da sua missão que é informar. O que está a acontecer nos últimos tempos é uma autêntica devassada do sofrimento humano que acaba por banalizar a dor para a tornar num espetáculo que só pretende cativar audiências.

Os Media estão sempre ávidos de histórias e quando surge um drama como um atentado terrorista que vitima dezenas ou centenas de pessoas, ou um tiroteio que causa dezenas de mortes, ou um acidente brutal que ceifa a vida, de modo inesperado, a pessoas públicas ou não, logo montam um circo frenético durante dias a fio ou até semanas, para invadirem todos os cenários possíveis na tentativa de conseguir ir mais longe do que conseguiu a concorrência. Basculham memórias, incomodam vizinhos, equacionam o ridículo para corresponder ao dever de mais três minutos em directo em mais um telejornal. Tudo para satisfazer a curiosidade mórbida das audiências.

Digamo-lo com toda a verdade: Não é o dever de informar que está em causa, mas antes, a sofreguidão de ter mais audiências que permitam subir no ranking e, por consequência, obter mais receitas. O que importa, acaba por ser a ganância mercantilista e não o elevado dever de gerar solidariedade humana e proximidade com quem sofre e eu que sou contra as ditaduras não suporto a dos meios de comunicação social que se deixam vender aos interesses estranhos que os pervertem.

A dor requer respeito e clama por um território de privacidade, de silêncio e de ternura. Quem sofre, merece poder recolher-se no santuário da sua intimidade para aí se confrontar com o sentido da vida e se interrogar sobre o “para quê” do que está a viver. É o espaço da nossa espiritualidade que Tolentino Mendoça, no Prefácio à obra de Joan Chittister, “O Sopro da vida interior”, caracteriza assim: “Por vezes, é uma luta cravada nas entranhas, por vezes é uma luminosa dança.” Há uma dignidade na dor que impele à missão de sermos solidários com quem sofre. A vozearia medonha que circunda o drama feito notícia é um ultraje a quem sofre e uma invasão indevida que torna mais sangrenta a angústia de certas horas.

Transformar a dor humana num reality-show é uma tentação que nos torna menos humanos. Mais do que holofotes e microfones, o sofrimento dos outros necessita dum irmão e do seu abraço, dum beijo terno, da comunhão na oração e da partilha que reconstrói.

P. Mário, In Pórtico, Ser Igreja 2/12/2016