A Verdadeira Religião

Henry Newman, presbítero anglicano convertido ao catolicismo e uma das mais destacadas figuras da cultura na Inglaterra do século XIX, deixa-nos, no seu Romance Calista, a escultora grega, uma interessante definição de religião. Insatisfeita com a religião grega, a catecúmena Calista recebe, pelo testemunho dos que lhe são próximos, a fé cristã que «consistia na intimidade da presença divina no coração».

Estamos mais habituados a ver a religião como o esforço que temos de fazer para chegar a Deus. Como as nossas forças são frágeis, facilmente nos decepcionamos no caminho da fé permanecendo no desalento de quem nunca consegue chegar muito longe nas encruzilhadas de Deus. Por outro lado, facilmente nos escandalizamos com o contra-testemunho das pessoas religiosas, vendo nele fortes razões para desistirmos dos caminhos da fé.

Esta noção de Deus comum às grandes tradições religiosas, acentuou-se ainda mais com os ideais da modernidade onde a consciência do homem é o centro de toda a sua acção e chegar a Deus tem de ser uma escolha sua, livre e consciente. O resultado é uma cultura angustiada incapaz de responder aos anseios mais profundos do seu humano.

Vinte séculos de Cristianismo não foram ainda suficientes para inverter esta lógica religiosa. Na tradição cristã, é Deus que vem ao nosso encontro. Na história da Salvação a iniciativa é sua, movido unicamente pelo amor às suas criaturas onde quer edificar uma morada. Tudo o que precisa é um coração disponível para que possa entrar.

A beleza do seu amor consiste em que Deus não está à espera de sermos perfeitos para, então, nos começar a amar. Simplesmente, ama-nos como somos e preenche-nos com a sua presença e com a sua Graça que nos capacita para itinerários de esperança nos caminhos da nossa história pessoal e comunitária.

Na experiência da fé, conta mais o que Deus faz no nosso coração na gratuidade do seu amor do que tudo o que possamos fazer, imaginando que a fé depende da nossa capacidade de acreditar e das nossas forças para chegar até Deus, apesar de necessárias.

A Palavra de Deus está a surpreender-nos a todo o momento com passagens inesperadas que invertem a lógica tradicional de encarar a religião. Jeremias exprime a sua vocação desta forma: «Tu seduziste-me, Senhor, e eu deixei-me seduzir». A fé é um caminho de sedução onde Deus se revela no coração da história cruzando o seu olhar com o nosso, das mais diversas formas: No pequeno gesto de amizade, no amor vivido em família, nas belezas que nos circundam, nas descobertas, nas surpresas, nos encantos. Deus não se cansa de nos surpreender para que o nosso coração se liberte das cadeias do egoísmo e se transforme na sua morada. O mesmo Jeremias apresenta o Senhor como «Deus que sonda os corações» para neles entrar.

O Papa Francisco, na Exortação Alegria do Evangelho, ensina, no número 8: «Chegamos a ser plenamente humanos quando somos mais do que humanos, quando permitimos que Deus nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro».

Neste tempo de Quaresma, o desafio é deixar-nos seduzir pelo olhar de Deus para que nos conduza e tudo recupere o seu verdadeiro sentido. Neste tempo de conversão, tenhamos a ousadia de rever a nossa relação com Deus. Abracemos uma fé que consista na «intimidade da presença divina no coração». Então, tudo se iluminará e entenderemos que, afinal, a Páscoa não é uma história de há dois mil anos mas será, antes, a festa do amor que Deus, hoje, quer celebrar no nosso coração.

Padre Mário Tavares de Oliveira, in PÓRTICO | 6-3-2015